Todos que já se emocionaram com a sétima arte, seja vendo um filme mais pretensioso, como os de Alfred Hitchcock, ou uma simples animação da Disney, têm em mente aquela cena inesquecível que fica gravada na memória. Que aqui, neste texto, eu chamo de antológica ou poética. Pode ser a cena da banheira de Psicose (Psycho, 1960) ou a morte do pai do Simba em O Rei Leão (The Lion King, 1994). Todas têm a capacidade de permanecer em nossa memória, nos emocionar e aumentar o nosso apreço pelo cinema.
A primeira sessão de cinema feita pelos irmãos Lumière, na França, em 1895, mostrava um trem chegando na estação. Os espectadores, ao verem o trem se aproximando, saíram correndo, tamanho o impacto da novidade do que estavam vendo, como se o cinema fosse uma tecnologia de realidade virtual de hoje. E uma cena mágica foi rememorada no belo filme de Martin Scorsese, A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, 2011), que é uma grande homenagem ao cinema e ao trabalho de Georges Méliès. Méliès, em sua obra Viagem à Lua (Le Voyage dans la Lune, 1902), apresenta a cena icônica de um foguete aterrissando no olho da Lua. Quem quiser pode ver a magia dessa cena no YouTube.
É esse tipo de cenas mágicas, antológicas, poéticas, que de alguma forma ficam registradas em minha memória cinematográfica, por mais singela que seja, que irei falar.
Grande parte das cenas poéticas que me marcaram no cinema foram produzidas pela nouvelle vague, movimento francês que surgiu por volta de 1959, cujos maiores expoentes foram Jean-Luc Godard e François Truffaut. Ele foi revolucionário tanto na forma, ao usar técnicas como câmera móvel e romper com as formas clássicas de edição, quanto no conteúdo, ao juntar nos roteiros literatura, poesia e até filosofia, além de suscitar problemas sociais, mas sem perder a leveza e o humor.
Uma dessas cenas que exemplifica a proposta da nouvelle vague acontece em Viver a Vida (Vivre sa Vie, 1962), filme de Godard, em que a personagem Nana, interpretada por Anna Karina, uma garota de programa que enfrenta problemas existenciais, no meio da trama para para contar a seguinte piada:
Um homenzinho bem folgado parou no café e pediu um café bem doce e bem quente e disse que não iria pagar porque não tinha medo de ninguém.
O homem do café achou aquilo tudo muito gozado e, pelo desatino do homenzinho, atendeu o pedido.
No outro dia, novamente o homenzinho pequeno voltou ao local e repetiu: “Eu quero um café bem doce e bem quente. E não irei pagar porque não tenho medo de ninguém!”
Mais uma vez, o dono do local ficou despeitado com a atitude impertinente do homenzinho, mas acatou o pedido pela coragem, não propriamente por medo.
Mas aí, num terceiro dia, o homenzinho voltou ao local e vociferou: “Me vê um cafezinho bem doce e bem quente e reafirmo, não irei pagar, porque não tenho medo de ninguém!”
Dessa vez o dono do local ficou inconformado porque já era a terceira vez. Então resolveu desafiá-lo: “Ah, então você não vai pagar porque não tem medo de ninguém? Pois eu também não tenho!”
Ao que o homenzinho respondeu: “Se você também não tem, então me vê dois cafezinhos bem doces e bem quentes!”
Bom, é uma piada simples e singela, mas que mostra a disrupção e a coragem de Godard de incluir no roteiro uma passagem assim, que não acrescenta nada de fato na história, mas é só uma forma nova de se fazer cinema. Por isso, acho a cena antológica.
E há outros exemplos no cinema do próprio Godard. Quando, nesse mesmo filme, um dos companheiros de Nana faz a imitação de um monstro que é ao mesmo tempo uma caricatura e cômico, tirando dela uns instantes de sorriso. Ou a cena em que Anna Karina dança ao redor da mesa do bar, todas rompem com o ritmo tradicional de um filme de Hollywood, mas conferem poesia e lirismo ímpares ao filme.
Ainda em Godard, o filme mais acessível dele talvez seja Banda à Parte (Bande à Part, 1964). Há uma cena antológica e inesquecível em que os três personagens principais estão no café e há música tocando no jukebox. Eles resolvem dançar com passos coreografados e sintonizados, do nada. E, enquanto dança, a personagem de Anna Karina reflete se os rapazes estão percebendo seus seios tenros sob o casaco. É uma cena de uma beleza incrível, e eu pessoalmente adoro cenas de dança no cinema.
As passagens de Godard que mais se assemelham a um livro são inúmeras, mas em O Desprezo (Le Mépris, 1963), era uma imposição dos produtores que Brigitte Bardot, atriz principal do filme, aparecesse nua. Godard achou um jeito poético de fazer isso. Numa cena antológica e poética, Bardot aparece de bruços, de costas, e é possível observar todo o esplendor de seu corpo no auge de sua forma e beleza. Ela está com seu marido e pergunta a ele se gosta dos braços dela. Ele responde que sim. Ela pergunta se gosta das costas dela, e ele responde também que sim. Por fim, ela pergunta se gosta da bunda dela. Ele responde que sim, que ela é perfeita. Então, ela conclui que ele a ama inteiramente, ao que ele responde: “Eu te amo inteiramente, ternamente e tragicamente.” A fotografia de Godard, ora avermelhada, lembrando uma boate, ora normal, confere uma beleza e um lirismo singulares à cena.
Outro exemplo de extrema poesia de um dos meus filmes prediletos de Godard é Alphaville (1965), uma espécie de 1984 interpretado pela lente do francês, que mostra um universo distópico. Em uma cena antológica, o detetive do filme é interrogado com uma série de perguntas que têm a intenção de descobrir quem ele é. Uma das perguntas é: “O que ilumina a noite?” O detetive reflete, a câmera de Godard foca em seu rosto, e ele responde: “A poesia.”
Agora passando para outro expoente da nouvelle vague, mas não menos talentoso, François Truffaut: há inúmeras cenas marcantes desse cineasta também, mas eu queria destacar a cena em Jules e Jim (1962), em que Jules, Jim e Catherine, fantasiada de homem, disputam uma corrida numa ponte, e Catherine queima a largada para chegar na frente. É singela e inesquecível. Nesse mesmo filme, a cena em que Catherine canta “Le Tourbillon de la Vie”, ao som de um violão, é muito bela.
Ainda em Jules e Jim, a cena final (spoiler), em que Catherine se lança no rio com o carro, levando Jim junto, sob o olhar de Jules, é inesquecível e antológica. É uma metáfora poderosa sobre o amor e a tragédia.
Já em Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal, 1970), que mostra a vida de Antoine Doinel, um dos personagens mais famosos de Truffaut, quando a mulher dele, Christine, descobre sua traição com uma japonesa e o espera em casa, toda fantasiada de gueixa japonesa, com lágrimas nos olhos, é uma cena marcante. É um momento de intensa emoção e delicadeza, características do trabalho de Truffaut.
Passando para o cinema norte-americano, o plano-sequência é um recurso técnico no qual a câmera acompanha uma cena sem cortes, como se fosse em tempo real. Quando usado esse artifício de maneira adequada, confere uma beleza única à cena. Algumas cenas com esse recurso são verdadeiramente antológicas.
Por exemplo, o filme Festim Diabólico (Rope, 1948), de Alfred Hitchcock, é gravado praticamente todo em plano-sequência, no qual os cortes de cena são tão sutis que dão a sensação de se estar assistindo a uma peça de teatro. Já no filme A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958), de Orson Welles, a sequência de abertura, em que a câmera segue a implantação de uma bomba em um carro até a sua explosão, é um exemplo de pura maestria cinematográfica.
Outro plano-sequência memorável está em Boogie Nights (1997), de Paul Thomas Anderson. O filme narra a história de um jovem que entra na indústria pornográfica. Quando o protagonista, Dirk Diggler (interpretado por Mark Wahlberg), entra no clube adulto pela primeira vez, Anderson usa um plano-sequência longuíssimo para mostrar todo o estabelecimento, permitindo que conheçamos o ambiente e nos inserindo na realidade daquele universo como se fôssemos o próprio protagonista. É uma cena indispensável para a trama e antológica.
De maneira parecida, Quentin Tarantino usou o plano-sequência em Kill Bill: Volume 1 (2003). Na famosa cena no restaurante japonês “House of Blue Leaves”, quando a Noiva (Uma Thurman) enfrenta o grupo de assassinos “Crazy 88”, a câmera acompanha a ação sem cortes evidentes, capturando a intensidade do momento. A trilha sonora, com a banda japonesa The 5.6.7.8’s, contribui para a atmosfera eletrizante e inesquecível.
No cinema argentino, para os amantes de futebol, há uma icônica cena de perseguição em O Segredo dos Seus Olhos (El Secreto de Sus Ojos, 2009), de Juan José Campanella. Ela ocorre no lendário estádio do Racing Club, conhecido como “El Cilindro”. A sequência começa com um impressionante plano aéreo do estádio e, em seguida, mergulha na multidão, capturando a tensão crescente enquanto os personagens principais, Benjamín Espósito (Ricardo Darín) e Pablo Sandoval (Guillermo Francella), buscam o suspeito Ricardo Morales. A perseguição continua pelas arquibancadas e termina dramaticamente no gramado, envolvendo jogadores, torcedores e policiais, tudo em um cenário caótico e eletrizante.
E por último, eu não poderia deixar de mencionar a cena mais emocionante, antológica, marcante e poética de todos os tempos, que é de Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso, 1988), de Giuseppe Tornatore. (Aqui contém spoiler). Se você vive em Marte e ainda não viu esse filme, dê essa dádiva a você mesmo e veja, se possível, hoje mesmo.
Se você não se emociona com esse filme, há grandes chances de você ser um sociopata. Deveria até ser um teste para identificar potenciais psicopatas: quem não chorar na cena final, é porque tem um desvio patológico grave.
O filme é uma história de amor. Mas não é uma história de amor qualquer. É uma história de amor e amizade improvável entre um velho e um garoto, unidos pela paixão pelo cinema. Alfredo (Philippe Noiret), o velho que opera o cinema da cidade, transmite sua paixão para o garoto Totò (Salvatore Cascio, na infância, e Jacques Perrin, na fase adulta), que no futuro se torna um cineasta famoso.
Um dia, Alfredo morre e deixa um presente para Totò: um rolo de película cinematográfica. Quando o cineasta volta para casa e assiste ao rolo em seu projetor particular, vem a grande surpresa: são todas as cenas de beijos que o padre da cidade havia censurado, recortadas e montadas como um único filme. Esse momento mágico, em que Totò assiste à montagem, é a personificação do amor pelo cinema, da criatividade e da poesia.
Devo dizer que, em sua genialidade guiada pelo seu amor ao cinema, Tornatore produziu a cena mais bonita de toda a história do cinema, encerrando esse texto com chave de ouro.