Hannah Arendt ficou conhecida por cunhar o termo “banalidade do mal” para descrever a capacidade humana de praticar e reproduzir o mal de forma quase inconsciente. Ela explora isso no julgamento de Adolf Eichmann, em que os perpetradores dos horrores do Holocausto agiam como se suas ações fossem meras tarefas administrativas, problemas logísticos a resolver, sem plena consciência do horror que estavam causando. De fato, o ser humano é o único animal consciente de praticar o mal; os outros agem puramente por instinto..
Mas há outros pensadores mais otimistas; Rousseau, por exemplo, diz que a natureza humana é boa, o homem nasce bom, e é a sociedade que o corromperia. Mas, apesar de toda maldade que é inerente ao homem, não dá para negar nossa capacidade, exclusiva do homem, de empatia, solidariedade, de nos orgulharmos de nós mesmos e dos outros, e de sentirmos uma alegria genuína pelas conquistas dos nossos amigos.
Esse sentimento de alegria repentina me invadiu ao receber a notícia de que meu amigo de infância, J., companheiro de tantas jornadas e confidente de tantas revelações, adquiriu um apartamento com sua noiva em uma localização excelente em São Paulo.
J. é uma figura agradabilíssima, um ótimo companheiro, e merece todos os frutos que está colhendo neste momento de sua vida. Generoso por natureza, ajudou muitas pessoas que sequer retribuíram – inclusive a mim (não me esqueci, amigo). Além disso, é um excelente professor, que domina seu ofício como poucos, com uma didática que tive o privilégio de presenciar. Ele possui um dom raro para ensinar, e seus alunos, em reconhecimento, o escolheram até como paraninfo da formatura deles neste ano.
Palmeirense inveterado, esse é mais um ponto de cumplicidade que temos: falar mal do time que tanto amamos e que nos dá tantas alegrias, apesar dos dissabores. É uma paixão em comum que compartilhamos. Meu companheiro de risadas da época do curso de inglês, fazíamos até a professora rir com nosso bom humor. Saíamos para comer; como éramos muito jovens para beber, nos contentávamos com um lanche no McDonald’s ou no Burger King. Mais tarde, já adultos, frequentamos juntos o Allianz Parque, e ele, generosamente, me convidou com ingressos que tinha sobressalentes. Assistimos aos jogos e bebemos juntos. Para completar, como sou pé-quente, foi justamente naquele ano que o Palmeiras saiu da fila de mais de 22 anos.
Estava absorto em júbilo pela notícia de meu amigo quando minha mãe fez um comentário assaz impertinente, dizendo que eu também poderia alcançar esse tipo de conquista e que “ainda dava tempo”. Isso interrompeu minha alegria momentaneamente, trazendo uma fúria súbita, não contra meu amigo, mas pela falta de tato do comentário naquele momento da minha mãe.
Eu, como sabem, estou vivendo um momento totalmente diferente da minha vida, e de certa forma estou feliz com minhas escolhas atuais, assim como estou feliz pelo meu amigo.
No filme Forrest Gump, vemos a história de um rapaz que, possivelmente autista (embora isso nunca fique explícito), supera inúmeras adversidades e inspira os outros com seus feitos, enquanto sua amiga de infância, brilhante, afunda-se por conta de escolhas ruins, incluindo o vício. Esse filme reflete bem como o acaso pode guiar nossas vidas. Forrest, por exemplo, começou a correr sem motivo e acabou inspirando multidões. Entretanto, não me eximo da responsabilidade pelas minhas escolhas e decisões. Gosto de pensar na vida como uma maratona, e não como uma corrida de 100 metros rasos. O importante não é disparar no início, mas manter o ritmo ao longo do percurso.
No meu caso, como narro no texto O Roubo da Minha Vida, comecei a corrida da vida muito cedo. Aos 21 anos, já tinha um bom dinheiro, uma empresa e um escritório na Avenida Paulista – um dos endereços mais prestigiados de São Paulo. Mas perdi tudo por conta das minhas escolhas. Usando a metáfora da maratona, eu era como aqueles corredores da São Silvestre que saem correndo fantasiados só para aparecer no começo, mas logo se cansam e desistem.
Relatando o caso para minha ex-professora de inglês, uma jovem muito bonita, autodidata, que aprendeu inglês sozinha, e uma das pessoas mais inteligentes que eu conheci na vida, com quem estabeleci forte vínculo de amizade até ela se mudar para fazer doutorado no Canadá, dizia que eu era muito novo para estar embrenhado em todas essas coisas erradas (embora ela só tivesse 26) e perguntava o que eu fiz com o dinheiro que não deveria ter “Puta pobre em São Paulo”, dizia ela. Ao que eu respondia só com um sorriso amarelo. A mesma habilidade que eu demonstrei em ganhar dinheiro, eu tinha para gastá-lo.
Mas, voltando à figura central, que é meu colega, não pense que ele é um professor de colégio qualquer. Muitos médicos reivindicam para si a prerrogativa de se chamarem de doutores, mas doutor de verdade é meu amigo J., mestre e Ph.D. pela USP em Química. Ele poderia ser um personagem de The Big Bang Theory, seus reles mortais. Hoje, além de dar aulas em colégios conceituados, ele é professor universitário na prestigiada universidade Unip.
A minha alegria em escrever este texto e relatar as conquistas de meu amigo de infância, como se fossem até meus próprios feitos, e que servem de motivação para mim mesmo, demonstra a capacidade humana genuína de se alegrar com as conquistas do próximo.