Calma, meus amigos e amigas: este texto não é para anunciar uma recaída. Pelo contrário, é para celebrar quase um mês de sobriedade e refletir profundamente sobre como é levar uma vida abstêmia, o que pode levar uma pessoa a recair e quais são os sintomas dessa recaída. Como sempre, tudo sob a ótica e a lente da filosofia.
Quando recaí, os sinais já estavam presentes antes mesmo de eu ceder aos antigos subterfúgios de me entorpecer novamente. Eu demonstrava apatia diante da vida, havia perdido o interesse em ler ou em atividades que exigissem maior esforço intelectual ou físico. Passei a ser displicente com as tarefas de casa e até com minha aparência, com uma certa indiferença resignada.
Meus leitores mais antigos e assíduos devem se lembrar (uma única pessoa: beijos, amor) que, nessa época, eu só queria assistir MasterChef e consumir conteúdos fáceis. Foi exatamente nessa fase que recaí. O corpo dá sinais por meio do comportamento e dos pensamentos.
Eu gosto de filosofia, mas de uma filosofia prática, que se relaciona diretamente com a vida. Para mim, viver o pensamento e pensar a vida são inseparáveis. Nestes dias de sobriedade, em que estou colocando em prática minha visão de mundo, percebo uma melhora significativa na qualidade da minha existência. A sabedoria herdada dos antigos me ajuda a viver melhor.
Quem me lê com frequência talvez perceba até uma mudança na qualidade dos meus textos, tanto em conteúdo quanto no tom. Meu humor e meu estado físico se refletem na escrita: ora mais otimista, ora mais pessimista, dependendo da minha energia vital. Devo dizer que estou muito satisfeito com o nível das minhas publicações recentes.
Spinoza chamava de “orgulho” o sentimento de alegria gerado pela sensação de elevação da nossa potência de agir em algo que observamos em nós mesmos. Portanto, posso afirmar: estou orgulhoso de mim mesmo!
Para evitar a recaída, é necessário uma vigília constante sobre si mesmo e evitar gatilhos — que podem ser lugares, pessoas ou situações. Sinceramente, ver pessoas consumindo, seja presencialmente ou em filmes, não costuma ser um gatilho para mim. Mas a euforia, sim, às vezes me faz querer usar.
Por exemplo, hoje fui ao cinema assistir Ainda Estou Aqui com meu pai, no shopping Bourbon. Revisitar um lugar sofisticado, que me traz boas lembranças, onde já fiz uso anteriormente, assistir a um bom filme, fazer uma refeição agradável… Tudo isso me provoca uma euforia, quase como a vontade de “fechar com chave de ouro” cheirando uma carreira, como se fosse uma sobremesa após o jantar. Mas é uma ilusão.
Já aprendi que nunca fico em “só uma carreira”. O uso subsequente destruiria minha potência de agir e estragaria toda a experiência.
Cioran dizia que não há nada de errado em combater o vazio da existência com futilidades, como a beleza, o consumismo ou o prazer estético. Ele enxergava ir ao shopping, ao cinema ou comprar roupas caras como formas válidas de lidar com a vida. No máximo, você prejudica o cartão de crédito, mas não o corpo e a mente.
Essa foi a parte confessional. Agora vem a parte filosófica e densa. Se você não gosta, pode parar por aqui. Boa noite e obrigado pela leitura.
A Recaída — Parte 2: Contextualização Filosófica
Eu poderia ter encerrado o texto no parágrafo anterior. Mas ficaria raso, apenas uma confissão barata, sem conteúdo. E isso não é meu estilo. Então, vamos embasar.
Jean-Paul Sartre, em sua palestra O Existencialismo é um Humanismo, apresenta duas premissas fundamentais do existencialismo:
1. Inspirado por Rousseau, Sartre argumenta que o ser humano é o único animal que precisa dar sentido à sua existência. Diferente da tartaruga, que já nasce programada para nadar, como se tivesse um “software” pré-instalado de sobrevivência, o ser humano reflete sobre a vida e a morte.
2. Baseando-se em Descartes e seu cogito (“Penso, logo existo”), Sartre toma como ponto de partida o pensamento, ou melhor, a consciência: a capacidade humana de refletir sobre si mesma.
Quando dizemos “Estou gordo”, por exemplo, há dois sujeitos: aquele que afirma estar gordo e aquele que reflete sobre essa afirmação, possivelmente buscando formas de emagrecer. Essa autorreflexão é inerente à consciência humana.
Para Sartre, o ser humano é uma consciência livre, que molda sua essência por meio das próprias ações. Por isso, ele afirma que “a existência precede a essência”. Não nascemos com um propósito; criamos nosso significado por meio de nossas escolhas.
Dessa liberdade, surge uma responsabilidade imensa: estamos “condenados a ser livres”. Sartre chama o existencialismo de humanismo porque coloca toda a responsabilidade da existência no ser humano, que deve criar significado em um universo sem sentido pré-determinado.
Por outro lado, pensadores liberais, como John Stuart Mill, Rousseau, Hobbes, Locke e Kant, defendem que o ser humano não é totalmente livre. Para eles, a liberdade individual deve ser equilibrada com a convivência social. Em outras palavras, a minha liberdade acaba quando começa a do outro…
Por isso, surge o conceito de contrato social: uma renúncia parcial da liberdade natural em prol da liberdade civil e coletiva. A ideia por trás disso é que, no estado de natureza, prevalece a lei do mais forte. Não há respeito pela propriedade alheia, e ninguém pertence a ninguém. Para garantir um convívio mais harmonioso, os indivíduos estabelecem o contrato social, permitindo que vivam em sociedade de forma organizada e em equilíbrio.
Rousseau dizia que a verdadeira liberdade consiste em obedecer às leis que prescrevemos a nós mesmos. Kant vai além, propondo o imperativo categórico: devemos agir apenas de forma que nossa ação possa ser universalizada, ou seja, beneficie a sociedade como um todo.
Já Sartre sustenta que, ao exercer nossa liberdade, inevitavelmente escolhemos para toda a humanidade. Nossas ações moldam não só quem somos, mas também o mundo em que desejamos viver.
E como isso se aplica ao adicto? Simples. Quando decidi abandonar as drogas, procurei ajuda, busquei apoio e até confessei meus problemas aqui, no Recanto das Letras. Estabeleci uma espécie de contrato social com quem acredita em mim.
Livremente, escolhi um modo de vida sóbrio em detrimento de outro insano. Se eu recaísse, estaria mentindo para minha consciência (como no cogito de Descartes) e quebrando o pacto com a sociedade e com o ideal de humanidade que desejo seguir.
Acho que consegui amarrar bem as ideias, não? Se sim, devo me orgulhar triplicamente: por estar sóbrio, por ter sido compreendido e, acima de tudo, por estar feliz.