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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

Sobrevivência: A Arte de se Adaptar.

O filme Meu Tio na América, de Alain Resnais, é inovador ao contar uma história que combina elementos ficcionais com os conceitos do neurocientista Henri Laborit, que atua como uma espécie de “narrador científico” da trama. A história, embasada pelas teorias de Laborit, questiona o livre-arbítrio, o determinismo biológico e como os personagens são livres para tomar suas próprias decisões ou, ao contrário, profundamente influenciados pelo ambiente em que estão inseridos.

 

Nesse contexto, Laborit mostra que a sobrevivência de cada indivíduo depende da adaptação ao ambiente, mas essa adaptação não é condicionada apenas biologicamente, como sugeria Darwin, e sim moldada por estruturas culturais e sociais. Darwin, de forma diferente, argumentava que a capacidade de adaptação é geneticamente herdada e que o organismo mais apto sobrevive, enquanto o ambiente, ou a natureza, opera uma seleção natural, eliminando os inaptos.

 

Ao apresentar essas teorias, faço um paralelo com a minha vida. Quando eu era menor aprendiz, aos 16 anos, recebi um e-mail de corrente que falava sobre a necessidade de adaptação e flexibilidade. Apesar do tom de autoajuda, a verdade por trás dessa mensagem é incontestável. Isso se confirmou anos depois, quando fui internado em uma clínica de reabilitação. Nos primeiros dois dias, não consegui comer nada, e o cozinheiro, percebendo minha dificuldade, me ofereceu um copo de leite. Eu recusei imediatamente, já que só o cheiro de leite me causa náuseas, mas ele, com sabedoria, respondeu: “O ser humano é uma máquina de sobrevivência; não há nada a que ele não possa se adaptar. Daqui a alguns dias, você vai estar bem e comendo de tudo.”

 

E ele estava certo. Alguns dias depois, a hora das refeições se tornou um dos momentos mais aguardados por mim. Passei a comer alimentos que nunca havia experimentado e a encontrar prazer em coisas simples. Isso só reafirmou minha convicção de que sou uma pessoa maleável, capaz de me adaptar aos mais diversos ambientes, por mais adversos ou inóspitos que pareçam. Como diz o príncipe Hamlet: “Eu poderia viver aprisionado dentro de uma casca de noz e ainda assim me considerar livre, desde que pudesse sonhar.”

 

Essa habilidade de adaptação também me permitiu circular por diferentes meios e classes sociais: da elite à favela, da erudição ao popular. Já frequentei festas de luxo por conta do trabalho e bailes de rua na favela por conta da minha adicção. O segredo da adaptabilidade não é tentar ser alguém que você não é, atuar como um ator imitando ou mimetizando os outros, pois isso sempre parecerá destoante. É, sim, absorver a cultura local sem perder sua originalidade

Como se diz na cultura da favela: ‘é saber chegar e saber sair’. Eu, por exemplo, sempre destoei do ambiente da favela, e sempre que chegava era chamado de ‘boy’, mas sempre fui respeitado. Nas raras vezes em que tive problemas, foram com bêbados, que foram fortemente repreendidos pelo incômodo que me causaram.

 

Para exemplificar, uma vez eu estava com aquele meu amigo, bem de vida, o estudante de economia a quem me refiro no texto Quando até seus Inimigos se Apiedam de tio mesmo que me apresentou ao pó pela primeira vez e que, embora custeado em boa parte pelos pais, sempre fez seus ‘corres’ para ganhar um dinheiro extra.


Ele tinha um Kargoo, no qual carregava bebidas para vender em bailes de rua de periferia, os chamados fluxos. Ele fazia uma boa grana por noite com essa atividade. Em uma ocasião específica, estávamos bebendo na Augusta junto com outro amigo, e o frio daquela noite me fazia usar um sobretudo elegantíssimo, impermeável, importado, como aqueles que se veem em Nova York. O casaco era preto, com um corte impecável, e me fazia parecer saído de um filme noir.

 

De repente, meu amigo decidiu ir ao fluxo para vender as bebidas e perguntou se queríamos acompanhá-lo. Concordamos, e fui vestido como estava, destoando completamente do ambiente onde os frequentadores usavam moletom, bonés e roupas mais casuais, como Oakley. Mesmo assim, não chamei atenção de maneira negativa. Pelo contrário, ouvi comentários elogiando o casaco e perguntando onde eu o havia comprado. Adaptabilidade, meus amigos.

 

Na clínica de reabilitação, a diversidade era tão grande quanto nos fluxos: havia pessoas de todos os contextos sociais, desde moradores de favelas até indivíduos de alto nível de escolaridade e gosto refinado. Lá, conheci um ex-jornalista que havia trabalhado na Folha de S.Paulo ao lado de ícones como Álvaro Pereira Júnior e Otavio Frias Filho. Sua história era trágica: ele perdeu um filho para o tráfico e uma filha bailarina brilhante para a distância emocional causada pelo vício. Apesar disso, ele atuava como terapeuta e mantinha a dignidade em meio às adversidades.

 

Conversávamos sobre literatura, cinema e música, e ele me provava que, mesmo no deserto, podem nascer flores. Na biblioteca da clínica, encontrei um livro sobre Morangos Silvestres, com o DVD incluso, mas todo riscado. Ainda assim, discorri sobre a filmografia de Ingmar Bergman para os outros internos, mais ilustrados do local. Tinha até estudante de física da USP, acometido pela dependência química em crack, além de ser homossexual assumido. Um dia, o ex-jornalista comentou: “Esse lugar deve ser um estupro ao seu cérebro.” Respondi apenas mentalmente: adaptabilidade.

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 07/01/2025
Alterado em 07/01/2025
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