Lembro bem do “amigo” que me apresentou à coca pela primeira vez. Ele me alertou, com palavras que ainda ecoam na minha mente: “Tome cuidado, porque isso é uma coisa muito feia.” É curioso, porque as drogas, embora estigmatizadas como algo feio, algo que marginaliza, estão presentes em todas as camadas da sociedade.
Esse colega, por exemplo, era estudante de Economia na PUC, alguém de uma camada social mais elevada, cuja mensalidade, carro, e até os prazeres mais frívolos eram custeados pelos pais. Ele era o oposto do estereótipo que se associa ao “viciado”. Isso só comprova que a iniciação no uso de drogas está mais relacionada ao meio em que a pessoa vive do que a qualquer ideia de caráter moral, como Kant ou mesmo o direito brasileiro poderiam sugerir.
Provar isso não é difícil. Pense nos inúmeros músicos que se envolveram com drogas – muitos, tragicamente, perderam suas vidas antes de conseguirem se recuperar. Nomes como Cazuza, Elis Regina, Renato Russo, Dinho, e Nazi no Brasil; Kurt Cobain, Amy Winehouse, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Whitney Houston, Elton John, entre outros, no cenário internacional. Todos eles careciam de caráter moral? Ou simplesmente estavam inseridos em um meio onde as drogas circulam livremente, quase como parte da rotina?
O mesmo acontece em outros contextos, como nas periferias e favelas, onde o tráfico e o consumo de drogas fazem parte do cotidiano. Embora muitos escapem – talvez até a maioria –, é inegável que o meio social exerce uma influência muito maior do que qualquer suposta falha moral ou de caráter individual.
E agora, voltando ao meu caso, a dependência química é algo tão pesado, tão estigmatizante, que até meu antigo algoz – aquele alemão inculto que costumava comentar com sarcasmo alguns dos meus textos – mudou o tom. Recentemente, ele voltou a comentar no texto sobre “O Roubo Que Mudou Minha Vida” (click no link se quiser ler o texto e comentário), mas de forma comedida, quase solidária. Comentou que eu estava “desbloqueado” na página dele, como se fosse um gesto de trégua, talvez até de piedade, ao perceber minha vulnerabilidade. Aceito essa caridade, porque até ela tem o seu valor.
Reconheço que me coloquei nessa situação. Não me vitimizo. Mas também não posso negar o peso dessa chaga que carrego no peito, essa pedra de Sísifo que empurro repetidamente, esse corvo que retorna sempre para me lembrar do meu passado: nevermore.
Meu maior medo é que esse histórico, essa marca, esse estigma, se torne um obstáculo intransponível para qualquer tipo de relação que eu possa ter com a pessoa que amo – mesmo que seja uma amizade, ainda que à distância, pelas teclas frias do teclado do celular ou do computador.
Não dá para voltar atrás. Esse poder não está ao alcance da consciência, e é por isso que o passado é tão doloroso e carregado de ressentimento, segundo Nietzsche. Mas, se o peso de ser um dependente químico for sempre um impedimento, sempre um “número da besta” marcado na minha testa, o que mais eu desejaria senão o poder de apagar o passado?
Apesar de tudo, não me sinto estigmatizado. Como Elton John, minha vontade é assumir publicamente minha luta contra o vício. No meu caso, isso significa informar todos do meu grupo de trabalho e mostrar que, mesmo carregando essa mácula, fiz de mim alguém instruído, culto, muito mais lido que todos — até mesmo médicos que tiveram a melhor formação desde o berço (alguns verdadeiros vencedores, vindos de outros países). Tenho mais experiência e histórias para contar do que a maioria, embora ainda inapto para muitas coisas da vida, é verdade.
Essa é a minha história. E ela é especial porque é inteiramente minha. Eu a desenhei, vivi, senti e continuo a sentir, na pele. E as marcas, ainda que dilacerantes, estão cravadas em meu corpo como prova disso tudo. Meu nariz, ainda machucado, não me deixa esquecer disso.