Antes de começar, quero expressar minha gratidão à pessoa que amo. Em um texto antigo que ela escreveu, mas que ainda guardo na memória, dizia que eu poderia compartilhar todos os meus pensamentos sem medo de julgamento, pois ela apenas ouviria. E, até hoje, é exatamente isso que parece estar fazendo. ❤️❤️❤️
Vivemos na pós-modernidade, um período em que a filosofia e a ciência desconstruíram muitas das ilusões que moldaram nossa visão de mundo durante séculos. Desde Espinosa e Nietzsche, passando por pensadores contemporâneos, até as descobertas recentes da neurociência, conceitos como livre-arbítrio, razão predominante sobre o corpo e vontade como força autônoma do ser humano foram devidamente sepultados, no que se diz a respeito a pesquisa séria acadêmica.
Se você ainda acredita nessas ideias, lamento informar que ou está preso a dogmas, ou vive com valores ultrapassados, vindos de séculos atrás. Essas noções, especialmente de livre-arbítrio e boa vontade, foram popularizadas por Immanuel Kant, um dos maiores filósofos morais. Para Kant, a razão e a boa vontade eram capazes de subjugar os impulsos instintivos e corporais. Ele acreditava que o ser humano, por meio da razão, poderia agir de forma ética e moral, seguindo o imperativo categórico: agir de tal maneira que sua ação, se repetida por todos, fosse benéfica para a humanidade.
No entanto, as teorias modernas, especialmente da neurociência, refutam essa visão. Antonio Damasio, por exemplo, mostrou que o ser humano age primordialmente a partir dos estímulos do corpo em interação com o mundo. Sentimentos e pensamentos não antecedem a ação; ao contrário, surgem como respostas aos estímulos corporais. As afecções que o corpo sofre ao interagir com o mundo — as intensidades de energia que atravessam nosso organismo — moldam nossas ideias, comportamentos e decisões. Não temos liberdade para evitar sensações como fome, dor ou paixão, pois elas são respostas naturais do corpo. É apenas depois dessas respostas que surgem as imagens do pensamento e a consciência.
Por isso, afirmar que problemas como a dependência química são apenas uma questão de moralidade ou boa vontade revela um completo desconhecimento dos processos corporais e psíquicos envolvidos. A substância afeta o corpo de tal maneira que apenas um afeto ainda mais poderoso pode reverter essa condição. Pode ser o medo da morte iminente, uma dor excruciante, ou o afeto do amor — seja pela vida ou por alguém especial.
Jean-Paul Sartre, em sua célebre conferência transformada no livro O Existencialismo é um Humanismo, também reflete sobre a liberdade humana, mas de maneira muito diferente de Kant. Para Sartre, o ser humano primeiro existe, e só depois se define por suas escolhas e ações. Ele introduz o conceito de má-fé, que ocorre quando uma pessoa se engana deliberadamente sobre sua liberdade, fingindo estar completamente presa a determinismos externos ou justificando suas ações como inevitáveis. Por outro lado, ele fala também de má consciência, que se manifesta quando o indivíduo tenta esconder de si mesmo a verdade sobre suas escolhas, vivendo em negação ou autoengano.
No contexto da dependência química, a má-fé pode aparecer quando o adicto afirma que sua condição é completamente externa, negando qualquer possibilidade de escolha. A má consciência, por sua vez, surge quando ele reconhece, em algum nível, sua responsabilidade, mas opta por ignorá-la, preferindo conviver com o autoengano. No entanto, Sartre reconhece que essa liberdade radical, que tanto defende, não é fácil de exercer. Ela traz o peso do desespero — a consciência de que estamos limitados pelas condições do mundo e do corpo, sem apoio externo, como Deus, para garantir e apoiar o sucesso de nossas ações e decisões. Estamos estritamente sós.
Sartre é um existencialista, diferente das filosofias pós-modernas, e ele ainda enxerga uma possibilidade de escolha humana, apesar dos fatores externos e da contingência do mundo e do corpo.
É aqui que a crítica de Sartre a Kant se torna evidente. Enquanto Kant enxerga a moralidade como algo universal, sustentado pela razão e pela boa vontade, Sartre aponta para a contingência da existência e o desafio de viver em um mundo sem garantias. Para ele, a liberdade é angustiante porque exige uma constante reinvenção diante de limitações inevitáveis.
Nesse sentido, as ideias de Kant sobre a razão prática e o livre-arbítrio são desafiadas pelas descobertas modernas. Damasio mostra que a razão não é autônoma, mas profundamente enraizada no corpo. Sartre, por outro lado, questiona a universalidade das leis morais kantianas, argumentando que a liberdade humana é situada e muitas vezes condicionada por fatores externos e internos.
Concluo afirmando que superar a dependência química não é uma questão de simples força de vontade, mas de reorganizar os afetos e encontrar novos caminhos corporais e emocionais. É necessário um movimento que vá além da razão e da vontade isoladas, envolvendo todo o ser, corpo e mente, em um processo de transformação.
O amor — por si mesmo, pela vida ou por alguém especial — pode ser o afeto mais poderoso para romper com as cadeias da dependência. Não é apenas uma questão de moralidade ou lógica, mas de ressignificar a existência e encontrar na relação com o outro e com o mundo novas possibilidades de ser e de agir. Esse amor, mais do que qualquer imperativo categórico, é capaz de transformar e libertar.