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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

FILOSOFIA PARA VIVER E SOBREVIVER

André Comte-Sponville, nosso filósofo contemporâneo, afirma que a filosofia é pensar a vida e viver o pensamento. Ele se baseou nos antigos para dizer isso. E aqui faço um desabafo: meus textos sobre filosofia não são tão lidos quanto os sobre política, brigas virtuais ou polêmicas. É verdadeiramente uma pena, pois são justamente esses textos que mais me enchem de orgulho. Contudo, não poderia concordar mais com o filósofo francês: a filosofia não pode ser dissociada da vida. Ela tem que ter aplicação prática com o nosso cotidiano.

 

Quando a filosofia se torna apenas um meio de adquirir cultura, transforma-se em um instrumento burguês. Certo tipo de cultura, a cultura erudita, é algo puramente burguês. Mas a filosofia é para todos. Em algum momento da vida, todos somos filósofos, pois já nos vimos refletindo sobre os mistérios do mundo, o melhor modo de viver, de agir, sobre o bem e o mal, entre outras questões.
 

Para Luc Ferry, filosofo francês, a filosofia é uma disciplina que tem a verdade como objetivo, a razão como instrumento e a sabedoria ou felicidade como finalidade.

 

Os gregos antigos chamavam a felicidade de eudaimonia, mas, para eles, o conceito era muito diferente do que entendemos hoje. Felicidade, naquele contexto, significava viver de acordo com o papel social na ordem cósmica do universo, que eles consideravam perfeito. Mesmo que o conceito de felicidade tenha mudado ao longo dos séculos, ela continua sendo um dos principais objetivos da filosofia. Acreditar em uma filosofia e viver de acordo com ela, sem hipocrisia, é uma tarefa árdua e exige um esforço constante de aperfeiçoamento. A maioria das pessoas vive a vida no improviso e, inconscientemente, isso se torna sua filosofia de vida.

 

No livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, o personagem Quincas Borba apresenta sua filosofia de vida, à qual deu o nome de Humanitismo. Para ele, Humanitas é o princípio do universo, aquilo que move o mundo. Nesse sistema, não existe bem ou mal; tudo faz parte da vontade de Humanitas. Os mais fortes estão mais aptos a sobreviver, numa clara paródia ao darwinismo, resumida na célebre fórmula: “Ao vencedor, as batatas.”

 

“Para entenderes bem o que é a morte e a vida, basta contar-te como morreu minha avó.”

— Como foi?

— Senta-te.

 

Rubião obedeceu, dando ao rosto o maior interesse possível, enquanto Quincas Borba continuava a andar.

 

— Foi no Rio de Janeiro, começou ele, defronte da Capela Imperial, que era então Real, em dia de grande festa; minha avó saiu, atravessou o adro para ir ter à cadeirinha, que a esperava no Largo do Paço. Gente como formiga. O povo queria ver entrar as grandes senhoras nas suas ricas traquitanas. No momento em que minha avó saía do adro para ir à cadeirinha, um pouco distante, aconteceu espantar-se uma das bestas de uma sege; a besta disparou, a outra imitou-a, confusão, tumulto, minha avó caiu, e tanto as mulas como a sege passaram-lhe por cima. Foi levada em braços para uma botica da Rua Direita, veio um sangrador, mas era tarde; tinha a cabeça rachada, uma perna e o ombro partidos, era toda sangue; expirou minutos depois.

 

— Ouve o resto. Aqui está como se tinha passado o caso. O dono da sege estava no adro e tinha fome, muita fome, porque era tarde, e almoçara cedo e pouco. Dali pôde fazer sinal ao cocheiro; este fustigou as mulas para ir buscar o patrão. A sege, no meio do caminho, achou um obstáculo e derrubou-o; esse obstáculo era minha avó. O primeiro ato dessa série de atos foi um movimento de conservação: Humanitas tinha fome. Se, em vez de minha avó, fosse um rato ou um cão, é certo que minha avó não morreria, mas o fato era o mesmo; Humanitas precisa comer. Se, em vez de um rato ou de um cão, fosse um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, diferia o caso no sentido de dar matéria a muitos necrológios; mas o fundo subsistia. O universo ainda não parou por lhe faltarem alguns poemas mortos em flor na cabeça de um varão ilustre ou obscuro; mas Humanitas (e isto importa, antes de tudo) Humanitas precisa comer…”

 

— E que Humanitas é esse?

— Humanitas é o princípio. Mas não, não digo nada, tu não és capaz de entender isto, meu caro Rubião; falemos de outra.

— Queres ser meu discípulo?

— Quero.

— Bem, irás entendendo aos poucos a minha filosofia; no dia em que a compreenderes, acharás que a dor é uma ilusão, e o mesmo a morte. Crê-me, o Humanitismo é o remate das coisas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo.”

 

Esse trecho é marcante porque revela a tendência ao pedantismo de certos filósofos ao elaborarem suas doutrinas. Quincas Borba conclui: “Humanitismo é o remate das coisas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo.” A mesma “ego trip” podemos ver em Nietzsche, em Ecce Homo, ao escrever capítulos como “Por que sou tão sábio?” e “Por que sou tão inteligente?”

 

Trouxe esse exemplo para ilustrar como não é fácil aderir a uma filosofia e viver de acordo com ela. Como sabemos, Rubião tornou-se adepto do Humanitismo, que prega a sobrevivência dos mais fortes, mas acabou perdendo toda sua fortuna, herdada, por ingenuidade e fraqueza.

 

Rubião não soube pensar a vida e viver o pensamento. Assim como muitos de nós, eu incluso, no final acabamos sem as nossas batatas!

 

 

 

 

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 19/12/2024
Alterado em 19/12/2024
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