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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

Somos Muitos em Um Só

Minha mãe vive dizendo que eu tenho duas personalidades: uma em casa e outra no ambiente de trabalho. Esse comentário despertou em mim o desejo de me aprofundar mais no assunto. Antes, quero fazer uma breve contextualização filosófica, pois acredito que isso pode ajudar a estruturar a reflexão.

 

De maneira geral, é comum dividir a filosofia em duas grandes correntes: os materialistas e os idealistas. Os materialistas vão desde os pré-socráticos, como Demócrito e Heráclito, passando por Espinosa, Nietzsche e os pós-modernos, como Deleuze, Foucault e Cioran. Já os idealistas incluem nomes como Platão, Kant e Hegel.

 

Os materialistas defendem que o ser humano é constituído apenas por matéria — corpo, energia, força, potência — e que é o próprio corpo que pensa e age. Em contrapartida, os idealistas acreditam que o homem, além de corpo, possui uma alma ou espírito, que seriam os verdadeiros responsáveis pelo pensamento. Para eles, a alma é superior ao corpo porque é eterna, enquanto o corpo é finito. Além disso, sustentam a existência de um mundo ideal — o das ideias — que seria verdadeiro, em oposição ao mundo sensível, o dos afetos, que muda constantemente.

 

Uma das grandes transformações na filosofia ao longo dos séculos foi a linguagem. No passado, os filósofos utilizavam termos técnicos e uma linguagem voltada exclusivamente para iniciados. Isso era especialmente evidente durante o período escolástico, quando a filosofia era usada como instrumento para explicar Deus. Mas, a partir de Nietzsche, a linguagem filosófica mudou radicalmente. Tornou-se mais poética, lírica e simbólica, atribuindo tanta importância à beleza da escrita quanto ao conteúdo. Isso resultou em obras que são, simultaneamente, filosofia e literatura, como Assim Falou Zaratustra.

 

Foucault também exemplifica essa mudança, como em As Palavras e as Coisas, onde a beleza da linguagem desempenha um papel primordial, ainda que muitas vezes seja difícil de compreender. Filósofos como Sartre e Bergson chegaram a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, demonstrando que suas obras ultrapassavam os limites da filosofia tradicional, sendo também grandes realizações literárias. Livros como os de Cioran e Deleuze contêm passagens que mais se assemelham a poemas, peças teatrais e narrativas ficcionais. Um exemplo marcante dessa revolução, tanto no conteúdo quanto na forma, é O Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari.

 

Neste livro, Deleuze aborda um tema que se conecta diretamente com o título deste texto: a ideia de que o sujeito não é uno. Pelo contrário, ele se modifica constantemente em função das intensidades dos afetos e das forças que o atravessam. De acordo com Deleuze, essas alterações fazem surgir múltiplos sujeitos. Em uma célebre passagem, ele utiliza o exemplo de Nietzsche para explicar essa ideia:

 

“Não há o eu-Nietzsche, professor de filologia, que perde subitamente a razão e que se identificaria com estranhas personagens; há o sujeito-nietzschiano que passa por uma série de estados e que identifica os nomes da história com esses estados: todos os nomes da história sou eu. O sujeito se estende sobre o contorno do círculo de cujo centro o eu desertou. No centro está a máquina do desejo, a máquina celibatária do eterno retorno. 

Como sujeito residual da máquina, o sujeito-nietzschiano obtém um prêmio que traz euforia (Voluptas) por tudo o que ela põe a girar e que o leitor supunha ser apenas a obra de Nietzsche em fragmentos: "Nietzsche crê dedicar-se doravante, não a um sistema, mas à aplicação de um programa (..) sob a forma dos resíduos do discurso nietzschiano, tornados de certo modo repertório do seu histrionismo. Não se identificar com pessoas, mas identificar os nomes da história com zonas de intensidade sobre o corpo sem órgãos; e a cada vez o sujeito grita "Sou eu, então sou eu!"

 

Nesse trecho, Deleuze explica que o “eu” é constantemente modificado pelos estados de intensidade que o corpo experimenta ao interagir com o mundo. Essas intensidades fazem surgir diferentes “eus”, que se identificam com pessoas, lugares, objetos, ou até mesmo ideias. Assim, o sujeito se reconhece através dessas relações, criando uma espécie de personalidade central. No entanto, as variações de intensidade podem gerar novas personalidades, dependendo do contexto.

 

Por exemplo, o corpo pode ser afetado por uma obra de arte, dando origem a um eu-eufórico-criador. Ou, sob o efeito do álcool, pode surgir um eu-insano-inconsequente. Deleuze usa a metáfora do ovo para descrever essa ideia: um corpo sem órgãos, atravessado por fluxos e gradientes de energia, onde, a cada linha de intensidade, surge uma nova expressão do “eu”. Como ele escreve:

 

“O corpo sem órgãos é um ovo: é atravessado por eixos e limiares, por latitudes, longitudes e geodésicas, é atravessado por gradientes que marcam os devires e as passagens. Nada é aqui representativo, tudo é vida e vivido.”

 

O Anti-Édipo é, em sua totalidade, uma crítica à psicanálise freudiana, que sustenta que o “eu” se organiza em três partes: o id (inconsciente), o ego (como o sujeito se apresenta ao mundo) e o superego (a consciência moral que regula o id). Para Deleuze, essa visão é idealista demais e reflete a mentalidade burguesa de Freud, imersa em sua cultura clássica greco-romana e na obra de Édipo.

 

Com isso, posso dizer que minha mãe está certa e errada ao afirmar que tenho duas personalidades: uma em casa e outra no trabalho. Na verdade, eu tenho múltiplas personalidades, que emergem conforme os estados de intensidade que afetam meu corpo. Existem, sim, estados mais recorrentes, que as pessoas identificam como minha “personalidade padrão” — um sujeito calmo, educado, etc. — mas, no fundo, sou atravessado por forças que me transformam constantemente.

 

 

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 18/12/2024
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