Na Netflix, é possível assistir ao filme Drive My Car, que anteriormente era exclusivo da plataforma de filmes alternativos e de arte, MUBI.
Com uma simplicidade que atinge o auge da sofisticação, o diretor Ryusuke Hamaguchi conta a história de Kafuku, um dramaturgo bem-sucedido, e sua relação com sua arte e sua esposa, Oto Kafuku. Logo no início, vemos Kafuku dirigindo Esperando Godot, de Beckett.
Oto, que também é roteirista, e Kafuku vivem uma relação aparentemente ideal, em que um inspira o outro. Desde a morte da filha do casal, Oto desenvolveu um bloqueio criativo que só desaparece durante o sexo. Perto do orgasmo, sua criatividade retorna, e ela cria histórias que conta ao marido nesses momentos de intimidade.
Uma dessas histórias é especialmente curiosa: narra a obsessão de uma adolescente por um rapaz. Usando uma chave que descobre, a jovem invade a casa dele, protegida por uma mãe superprotetora. No quarto do rapaz, ela busca vestígios dele, se deleita com seu cheiro e, a cada invasão, rouba um item pessoal enquanto deixa algo seu, como um laço de cabelo, uma peça de roupa ou, num momento de ousadia, até mesmo sua calcinha. Apesar do desejo, a jovem impõe uma regra a si mesma: jamais se masturbar no quarto dele.
Apesar da aparente harmonia entre Oto e Kafuku, há um ponto delicado: Oto não se satisfaz apenas com o marido e busca outros homens, muitas vezes atores ou pessoas do trabalho. Kafuku sabe das traições e, em algumas ocasiões, Oto até leva seus amantes para a casa do casal, como se quisesse ser descoberta. Um desses amantes é um jovem ator famoso.
Então, Oto morre inesperadamente devido a uma hemorragia cerebral, e é a partir desse ponto que o filme, de três horas, realmente começa.
Dois anos após a morte da esposa, Kafuku é convidado a dirigir Tio Vânia, de Anton Tchekhov. Durante as audições, ele escolhe um elenco peculiar, que inclui uma atriz surda-muda e o ator com quem Oto o traiu.
O título Drive My Car vem do fato de Kafuku ter sido diagnosticado com glaucoma, o que o impede de dirigir. Ele contrata uma motorista, Misaki Watari, com quem desenvolve um vínculo profundo. Kafuku tem uma ligação especial com seu carro, um Saab 900 vermelho, e raramente deixa alguém além dele mesmo dirigi-lo. A habilidade de Watari ao volante impressiona Kafuku, mas vem de uma história dolorosa: sua mãe trabalhava em uma boate, e Misaki a buscava todas as noites. Muitas vezes, sua mãe voltava bêbada e açoitava a filha. Apesar disso, Watari dirigia com extremo cuidado para evitar acordá-la. A relação entre as duas era marcada por conflitos e ressentimento. Mais tarde, Watari revela que sua mãe morreu no desabamento da casa em que viviam, e ela carrega a culpa por não tê-la socorrido.
Uma das cenas mais impactantes do filme ocorre quando o ator, amante de Oto, revela que ela se inspirava nele para criar histórias após o sexo. Isso destrói Kafuku, que acreditava no amor de Oto, mesmo com as traições. Para piorar, a conclusão da história da jovem obcecada, que Oto nunca contou ao marido, é revelada ao amante. A trama termina com a jovem invadindo a casa, ficando quase nua, quando um ladrão entra e, em legítima defesa, ela o mata. Ela vive o resto da vida consumida pela culpa.
Paralelamente, a produção de Tio Vânia é interrompida quando o amante de Oto se envolve em uma briga, mata um homem e é preso. Relutante, Kafuku assume o papel principal na peça, que reflete intensamente sua relação com Oto. Ele ainda se culpa por não ter chegado a tempo para tentar salvar a esposa no dia de sua morte.
Essa conexão entre culpa e perda une Kafuku e Watari. Ambos carregam arrependimentos profundos: ele pela esposa, ela pela mãe.
No final do filme, Watari aparece dirigindo sozinha o carro de Kafuku, acompanhada por um cachorro. Não fica claro se o carro foi um presente por seus serviços, se Kafuku morreu ou se suicidou e ela herdou o veículo, ou mesmo se os dois se casaram. O desfecho é propositalmente aberto.
Drive My Car é uma obra-prima japonesa. Para quem tem paciência para um filme de três horas, é uma experiência grandiosa, que lembra o trabalho do mestre Yasujiro Ozu, com sua sensibilidade única em explorar relações humanas.